O Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) ocupa uma posição peculiar no sistema tributário brasileiro. Desde sua concepção na Constituição de 1988, o tributo foi inserido entre aqueles que permitem ao Poder Executivo alterar suas alíquotas, justamente por sua natureza regulatória, e não meramente arrecadatória. Seu objetivo, portanto, reside na indução ou inibição de comportamentos econômicos específicos, como o consumo de crédito, operações de câmbio ou investimentos especulativos.
A doutrina clássica, como ensina Aliomar Baleeiro, já diferenciava o tributo de caráter fiscal daquele de caráter extrafiscal. O IOF, ao lado do IPI, é o exemplo por excelência do imposto extrafiscal, dotado de plasticidade e instrumentalidade. Nesse mesmo sentido, Hugo de Brito Machado alerta que “quando um tributo extrafiscal passa a ser utilizado como instrumento de mera arrecadação, rompe-se o equilíbrio constitucional entre finalidade e meio, gerando ilegitimidade do ato estatal”.
Infelizmente, o uso recorrente do IOF como instrumento de cobertura de déficits orçamentários tem provocado sua deturpação funcional. Nesse contexto, impõe-se o exame crítico da constitucionalidade de tais práticas.
Interpretação constitucional: o art. 153, §1º, da CF/88 e sua natureza excepcional
O art. 153 da Constituição Federal elenca os impostos de competência da União, e em seu §1º prevê:
“O Poder Executivo poderá alterar as alíquotas dos impostos previstos nos incisos I a IV, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei.”
Essa disposição não pode ser compreendida como uma autorização irrestrita. A própria exigência de observância às “condições e limites estabelecidos em lei” evidencia que a norma constitucional exige que essa prerrogativa seja regulamentada com parcimônia e submetida a freios legais.
José Eduardo Soares de Melo pontua que a norma constitucional aqui comentada deve ser interpretada segundo os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da legalidade estrita, não podendo se converter em salvo-conduto para ações arrecadatórias que contornem o papel legislativo do Congresso Nacional.
A elevação das alíquotas do IOF sem correlação com objetivos de regulação econômica implica grave violação ao princípio da legalidade tributária, previsto no art. 150, I, da Constituição. A doutrina constitucionalista já identificou que, ao permitir que o Executivo altere elementos essenciais da hipótese de incidência tributária por ato infralegal, fragiliza-se o modelo republicano de separação dos poderes.
Paulo de Barros Carvalho afirma que “a tributação deve estar atrelada à lei e ao princípio da moralidade administrativa, de modo que o emprego de tributos com objetivos diversos dos fixados em sua matriz de validade implica ilicitude material”.
Desse modo, transformar o IOF em tributo ordinário, manipulado à revelia do debate democrático e sem qualquer motivação regulatória coerente, é subverter a própria natureza do instituto. É o que Hugo de Brito Machado classificaria como “desvio funcional do tributo”.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem, infelizmente, oscilado entre o reconhecimento da função extrafiscal do IOF e a condescendência com seu uso arrecadatório.
No RE 177.135/RJ, rel. Min. Ilmar Galvão (1995), o STF reconheceu a legitimidade da majoração de alíquotas do IOF por decreto, ressaltando sua natureza extrafiscal. Contudo, não houve exigência de comprovação concreta da finalidade regulatória alegada, o que abre margem para invocações meramente formais de tal justificativa.
Mais recentemente, nos REs 1.480.048/RS e 1.472.012/RS, discutiu-se a legitimidade da atuação do Executivo federal na majoração do IOF com fins arrecadatórios. O debate se intensificou após decretos editados em 2025 elevarem significativamente as alíquotas do IOF, com o único objetivo declarado de elevar a arrecadação pública. Em reação, o Congresso Nacional editou o Decreto Legislativo nº 176/2025, sustando os efeitos desses decretos, por entender que houve desvio de finalidade.
A controvérsia foi judicializada, com a Advocacia-Geral da União ajuizando Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) para defender a validade dos decretos. A AGU sustentou que a finalidade extrafiscal não exclui a possibilidade de resultado arrecadatório e que não caberia ao Congresso avaliar a conveniência da política econômica definida pelo Executivo. O STF, até o momento, tem sinalizado entendimento no sentido de que é difícil caracterizar desvio de finalidade de forma objetiva, mostrando tendência à convalidação dos atos presidenciais.
A jurisprudência atual do STF legitima o uso da prerrogativa executiva para majoração do IOF, mas sem controle material rigoroso da finalidade alegada e há uma zona cinzenta entre a função extrafiscal e a motivação fiscal, que fragiliza a segurança jurídica e a supremacia do princípio da legalidade.
A atuação recente do Congresso ao sustar decretos e a reação do Executivo via ADI demonstram que a tensão entre Poderes permanece viva e necessita de balizas mais nítidas, tendo o Judiciário o dever de reequilibrar essa relação, exigindo motivação concreta e proporcional quando se tratar de aumento de IOF por decreto.
Conforme se extrai dos argumentos doutrinários e constitucionais aqui analisados, a majoração do IOF com finalidade exclusivamente arrecadatória configura desvio de finalidade e abuso da competência normativa delegada ao Executivo. Trata-se de uso inconstitucional de um mecanismo jurídico que, por sua excepcionalidade, exige motivação fundamentada e transparente.
É imperioso que o Judiciário, em nome da guarda da Constituição, exerça controle mais rigoroso sobre os decretos que alteram as alíquotas do IOF, exigindo que suas razões estejam ancoradas em objetivos de política econômica legítimos e não apenas no interesse arrecadatório do Tesouro.
Conforme maestrina lição do Professor Hugo de Brito Machado, o tributo só é legítimo quando nasce da lei e guarda fidelidade à sua finalidade. Quando se desvia da norma e da ética, transforma-se em instrumento de opressão estatal e de desrespeito ao contribuinte.
Valdetário Andrade Monteiro
Advogado – Professor – Conselheiro Federal da OAB – Ex-Conselheiro CNJ – Ex-Presidente da OAB/CE